Levantara mal humorado.
Na véspera, o porteiro do prédio havia avisado, em áspero tom, talvez por já estar cansado de intermináveis explicações: - “Amanhã só haverá água às onze horas”.
Bolas! Tinha que chegar às oito no escritório.
O bonito sol pareceu-lhe uma ironia da natureza. E o mar – doce mas incompreensível visão – fez-lhe pensar em modernos processos de desalização de suas águas. E onde anda a ciência que não se preocupa senão com mísseis espaciais?
O exemplar do Petit Prince, jogado como se não fossem tão sábias as lições de Exupéry, lembrou-lhe maldizer vaidosos governantes que se esqueciam de dar-lhe água. Água, sim. Simples H2O que tanto repetia o professor de química, a mesma água que o exigente mestre de língua pátria não cansava de repetir, frisando “com acento agudo no primeiro “a” ´por causa ... ” não sabia mais de que.
Fez-se à rua. Jactou-se no primeiro ônibus superlotado que por ele passou e não se conteve em extravasar a ira que lhe invadia o espírito ao tatear a escova de dentes no bolso do paletó.
Com ela, papel amarrotado, era lembrete do recado que lhe transmitira sua esposa, tão meiga (e agora se lembrava, nem a beijara ao sair...) O papel dizia: “O Sr. Menezes espera-o às oito. Assunto urgente”. Deveria ser sobre a compra do terreno. Jogou fora o papel. Afinal, não adiantava mais. Antes das nove não chegaria, nem se fosse voando. Com o tráfico engarrafado como estava só mesmo avião resolveria. Como estava longe o escritório.
Mas o aniversário do filhinho estava perto. Quem sabe se lhe poderia comprar o presente no horário de almoço. Se fechasse o negócio com o sr. Menezes...
E que semana tivera. Dois ou três dias viajando. Depois a doença do irmão. Ainda bem que fora só o susto. Já estava bom. A semana fora perdida, mas hoje... ah... hoje...
O ônibus parou, fim de linha. Saltou. Ou melhor, obrigaram-no a saltar. A empurrões. Pisou no pé da senhora em frente e a reação veio logo. Como pode, deuses, falar assim uma senhora? Tropeçou numa desculpa odiosa e insentida e rumou, não se sabe como, para o elevador do prédio da esquina. Ah... enfim o escritório!
Será que ainda o aguardava o sr. Menezes. Que lhe diria? Melhor inventar uma mentira expressiva. Por exemplo, que furara o pneu do ônibus. Por que faltara água? Quanto tempo perdido indo à casa do amigo para o banho matinal...
Atravessou, penteando o cabelo e acertando o nó da gravata, o corredor imenso e, fazendo o melhor sorriso, estendeu à secretária o cartão de visita: - “Queira anunciar-me. Tinha hora marcada para as oito. Diga ao sr. Menezes que a condução...”
- “Desculpe, cavalheiro. O sr. Menezes só virá depois das onze. Há falta d’água na cidade, o sr. sabe, não é?
Romeu Oliveira Gurgel,
publicado no jornal “O Bancantil”,
ano 6, número 59, de julho e agosto de 1963.