“Insisto,
pois, na ponderação de que ao julgar qualquer incidente como o que está em lide,
é primordial verificar quem lhe deu causa e punir, através da autoridade
competente, aqueles baderneiros, dilapidadores do patrimônio público, vândalos
e, sobretudo, procurar a apuração dos reais motivos e intenções.”
A palavra foi
substituída por pauta e a justificativa foi de que, in verbis,
“lide é
um termo técnico processual específico e cunhado por Liebman, significando uma
demanda em que há partes contrapostas em pretensão e um juiz para solucioná-la
– isto não acontece nunca na Agência.”
Sou vaidoso de meu
estilo, mas humilde quando não sei e, como não dou a palavra final, lide
virou pauta. E ponto.
Ponto final, para o
voto.
Para mim, não.
Acho que tive meu
direito de defesa cerceado e meu estilo redacional ofendido.
Explico:
Estou ciente de que
cuido de um processo administrativo, mas lide não foi “cunhada” por
Liebman, até porque, data venia, não
é moeda.
Antes de que Liebman
nascesse, já existia como substantivo feminino no antigo Lácio, com o
significado de trabalho (lite).
Também significa contenda,
combate, luta, ou questão judicial, litígio, pendência.
Existe até uma outra lide, com
diferente etimologia, adaptação da palavra inglesa “lead” para a parte
introdutória de matéria jornalista, uma espécie de resumo do que se vai
contar (manchete).
O Código de Processo Civil
de 1973, na exposição de motivos, estabelece uma identidade entre os conceitos
de lide e de mérito:
“Lide é, consoante a
lição de CARNELUTTI, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um
dos litigantes e pela resistência de outro. O julgamento desse conflito de
pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão
a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito.
A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as
aspirações em conflito de ambos os litigantes.”
Já Dinamarco, refere que
está convencido da inadequação da colocação da lide como pólo metodológico na
teoria do processo, porquanto não está satisfatoriamente explicada a hipótese
de revelia ou reconhecimento do pedido, quando não há contraposição de pedidos,
ficando-se com a ideia de que o processo não teria objeto nesse caso. O mesmo
problema ocorre no momento anterior à contestação, em que ainda não se tem
contraposição de demandas.
Para Liebman, a definição
de lide como sendo o mérito da causa poderia ser aceita se fizéssemos alguns
reparos ao conceito de lide proposto por Carnelutti (que foi a posição adotada
por nosso Código de Processo Civil, vale lembrar). Diz Liebman:
“Lide é, portanto, o
conflito efetivo ou virtual de pedidos contraditórios, sobre o qual o juiz é
convidado a decidir. Assim, modificado o conceito de lide, torna-se
perfeitamente aceitável na teoria do processo e exprime satisfatoriamente o que
se costuma chamar de mérito da causa. Julgar a lide e julgar o mérito são
expressões sinônimas que se referem à decisão do pedido do autor para julgá-lo
procedente ou improcedente e, por conseguinte, para conceder ou negar a
providência requerida.”
Eduardo Ribeiro de
Oliveira acompanha a ideia de Liebman de que o conceito de lide formulado por
Carnelutti mereceria alguns reparos para que pudéssemos identificá-lo com o
conceito de mérito:
“Verifica-se, do
exposto, que em duas classes de ações o conceito carneluttiano de lide não tem
aplicação em sua inteireza. Relativamente a uma delas, ele próprio o admite,
quando sustenta a existência de processo sem lide que corresponde à hipótese
examinada por Calamandrei sob o nome de processo inquisitório. Outros casos, o
de certos pedidos declaratórios, em que o comportamento do réu também não será
apto para fazer desaparecer o interesse do autor. Não se poderia, pois, afirmar
que houvesse pretensão resistida, necessária na doutrina de Carnelutti para
existir lide.
Há que se aceitar, em
decorrência de todo o exposto, que a adoção pura e simples do conceito de lide
formulado por Carnelutti e sua aceitação como apto a definir o mérito levaria a
que em alguns processos não seria possível demarcar-lhe os contornos. Sendo
esta conclusão inaceitável, formulação mais abrangente haverá de ser buscada em
que não se empreste maior relevo à conduta do réu, posto que nem sempre
decisiva. Parece que, para isso, haverá que se afastar a menção à resistência,
circunstância de que por vezes se prescinde. Lícito falar-se em conflito de
interesses qualificado por pretensão insatisfeita.”
Ovídio Baptista,
contudo, discorda desse posicionamento de que mérito equivaleria à lide. Para
os defensores desta teoria, o conceito de mérito está intimamente ligado a duas
premissas essenciais: (a) a decisão de mérito cinge-se ao ato de julgar, razão pela qual diz-se que julgar
a lide é o mesmo que julgar o mérito; (b) somente haverá verdadeiro julgamento
(leia-se decisão de mérito) quando o magistrado manifestar-se sobre o pedido do
autor para julgá-lo procedente ou improcedente. Isso faz concluir que qualquer
provimento do juiz que não seja um julgamento definitivo, não seria de mérito.
Se entendermos que o conceito de mérito corresponde ao julgamento da lide,
parece correto que a concessão de uma medida liminar não será decisão de
mérito. Para conceder ou negar uma liminar, o juiz baseia-se num juízo de
probabilidade, sem pronunciar-se definitivamente pela procedência ou
improcedência da pretensão posta em causa pelo requerente.
E conclui a crítica à
ideia de Liebman:
“Em última análise, e
para simplificar as coisas, o provimento de mérito com que o juiz, para
empregarmos as palavras de Liebman, ‘define a lide’, será necessariamente um
juízo declaratório e, como tal, definitivo e irrevogável. Se o juiz disser, como deverá dizê-lo
ao conceder a medida liminar, que o direito do autor é provável; que, do exame
por ele feito do material probatório então disponível, pareceu-lhe verossímil o
direito do autor, tais declarações sobre o merecimento (sobre o mérito) do
pedido são inteiramente irrelevantes, como ‘definição da lide’. Mesmo que o
julgador, expressando-se de modo incorreto, dissesse, naquele momento
processual, estar comprovado o direito do autor e ele plenamente convencido da
procedência da ação, ainda assim tal declaração ou seria inútil, por ser
reversível (revogável) na sentença final; ou acabaria valendo como declaração
definitiva.
Isto permite-nos uma
conclusão interessante. Nem a assertiva de Buzaid identificando o ‘objeto do
processo’ com o mérito da causa é correta, pois haveria tratamento da lide que
não se identificaria com o julgamento de mérito; e nem o entendimento de
Theodoro Jr., ao afirmar que ‘lide e mérito são sinônimos’ é verdadeiro. A lide
pode ser tratada através de uma medida liminar, sem que o mérito seja sequer
tocado; assim, como poderá sê-lo, por exemplo, nas ações de despejo e de
esbulho possessório, objeto de provimento executório decorrentes do julgamento
de mérito, ou julgamento da lide, conceitos estes, sim, como disse Liebman,
sinônimos perfeitos. Mesmo não sendo, o provimento executório, um julgamento de
mérito, ninguém lhe negaria a condição de ‘objeto do processo’.
Galeno Lacerda, assim
como Ovídio Baptista, não comunga do entendimento de que lide e mérito seriam
conceitos equivalentes. Para o autor, mérito é um conceito que implica
juízo de valor aplicado à conduta humana. Filosoficamente, é a propriedade do
ato, em virtude do qual o sujeito ativo receberá uma recompensa ou sofrerá uma
pena. Em síntese, diz Galeno, pode-se definir mérito como sendo a propriedade
do pedido do demandante da ação processual conformar-se ou não com o direito e,
via de consequência, ser acolhido ou rejeitado. Para ele, todo juízo de valor
consistirá numa sentença de mérito.
Isto posto, quando usei
a palavra lide, num processo administrativo, fi-lo sem querer maiores
digressões, simplesmente como se estivesse usando a expressão “trabalho” “luta”
“assunto” e nem estava pensando em contraditório.
Usei “lide” da mesma forma que a foi usado “cunhada” pelo
ilustre revisor na sua crítica, a quem rendo homenagem pelo alto saber jurídico.
Mera questão de estilo.
Romeu Oliveira Gurgel