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sábado, 20 de julho de 2013

Vamos à lide

Rascunhando uma decisão de relator em processo regulatório, fui censurado por usar a palavra lide no seguinte texto:
“Insisto, pois, na ponderação de que ao julgar qualquer incidente como o que está em lide, é primordial verificar quem lhe deu causa e punir, através da autoridade competente, aqueles baderneiros, dilapidadores do patrimônio público, vândalos e, sobretudo, procurar a apuração dos reais motivos e intenções.”
A palavra foi substituída por pauta e a justificativa foi de que, in verbis,
 “lide é um termo técnico processual específico e cunhado por Liebman, significando uma demanda em que há partes contrapostas em pretensão e um juiz para solucioná-la – isto não acontece nunca na Agência.”
Sou vaidoso de meu estilo, mas humilde quando não sei e, como não dou a palavra final, lide virou pauta. E ponto.
Ponto final, para o voto.
Para mim, não.
Acho que tive meu direito de defesa cerceado e meu estilo redacional ofendido.
Explico:
Estou ciente de que cuido de um processo administrativo, mas lide não foi “cunhada” por Liebman, até porque, data venia, não é moeda.
Antes de que Liebman nascesse, já existia como substantivo feminino no antigo Lácio, com o significado de trabalho (lite).
Também significa contenda, combate, luta, ou questão judicial, litígio, pendência.
Existe até uma outra lide, com diferente etimologia, adaptação da palavra inglesa “lead” para a parte introdutória de matéria jornalista, uma espécie de resumo do que se vai contar (manchete).
O Código de Processo Civil de 1973, na exposição de motivos, estabelece uma identidade entre os conceitos de lide e de mérito:
“Lide é, consoante a lição de CARNELUTTI, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência de outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes.”
Já Dinamarco, refere que está convencido da inadequação da colocação da lide como pólo metodológico na teoria do processo, porquanto não está satisfatoriamente explicada a hipótese de revelia ou reconhecimento do pedido, quando não há contraposição de pedidos, ficando-se com a ideia de que o processo não teria objeto nesse caso. O mesmo problema ocorre no momento anterior à contestação, em que ainda não se tem contraposição de demandas.
Para Liebman, a definição de lide como sendo o mérito da causa poderia ser aceita se fizéssemos alguns reparos ao conceito de lide proposto por Carnelutti (que foi a posição adotada por nosso Código de Processo Civil, vale lembrar).  Diz Liebman:
“Lide é, portanto, o conflito efetivo ou virtual de pedidos contraditórios, sobre o qual o juiz é convidado a decidir. Assim, modificado o conceito de lide, torna-se perfeitamente aceitável na teoria do processo e exprime satisfatoriamente o que se costuma chamar de mérito da causa. Julgar a lide e julgar o mérito são expressões sinônimas que se referem à decisão do pedido do autor para julgá-lo procedente ou improcedente e, por conseguinte, para conceder ou negar a providência requerida.”
Eduardo Ribeiro de Oliveira acompanha a ideia de Liebman de que o conceito de lide formulado por Carnelutti mereceria alguns reparos para que pudéssemos identificá-lo com o conceito de mérito:
Verifica-se, do exposto, que em duas classes de ações o conceito carneluttiano de lide não tem aplicação em sua inteireza. Relativamente a uma delas, ele próprio o admite, quando sustenta a existência de processo sem lide que corresponde à hipótese examinada por Calamandrei sob o nome de processo inquisitório. Outros casos, o de certos pedidos declaratórios, em que o comportamento do réu também não será apto para fazer desaparecer o interesse do autor. Não se poderia, pois, afirmar que houvesse pretensão resistida, necessária na doutrina de Carnelutti para existir lide.
Há que se aceitar, em decorrência de todo o exposto, que a adoção pura e simples do conceito de lide formulado por Carnelutti e sua aceitação como apto a definir o mérito levaria a que em alguns processos não seria possível demarcar-lhe os contornos. Sendo esta conclusão inaceitável, formulação mais abrangente haverá de ser buscada em que não se empreste maior relevo à conduta do réu, posto que nem sempre decisiva. Parece que, para isso, haverá que se afastar a menção à resistência, circunstância de que por vezes se prescinde. Lícito falar-se em conflito de interesses qualificado por pretensão insatisfeita.

Ovídio Baptista, contudo, discorda desse posicionamento de que mérito equivaleria à lide. Para os defensores desta teoria, o conceito de mérito está intimamente ligado a duas premissas essenciais: (a) a decisão de mérito cinge-se ao ato de julgar, razão pela qual diz-se que julgar a lide é o mesmo que julgar o mérito; (b) somente haverá verdadeiro julgamento (leia-se decisão de mérito) quando o magistrado manifestar-se sobre o pedido do autor para julgá-lo procedente ou improcedente. Isso faz concluir que qualquer provimento do juiz que não seja um julgamento definitivo, não seria de mérito. Se entendermos que o conceito de mérito corresponde ao julgamento da lide, parece correto que a concessão de uma medida liminar não será decisão de mérito. Para conceder ou negar uma liminar, o juiz baseia-se num juízo de probabilidade, sem pronunciar-se definitivamente pela procedência ou improcedência da pretensão posta em causa pelo requerente.
E conclui a crítica à ideia de Liebman:
Em última análise, e para simplificar as coisas, o provimento de mérito com que o juiz, para empregarmos as palavras de Liebman, ‘define a lide’, será necessariamente um juízo declaratório e, como tal, definitivo e irrevogável. Se o juiz disser, como deverá dizê-lo ao conceder a medida liminar, que o direito do autor é provável; que, do exame por ele feito do material probatório então disponível, pareceu-lhe verossímil o direito do autor, tais declarações sobre o merecimento (sobre o mérito) do pedido são inteiramente irrelevantes, como ‘definição da lide’. Mesmo que o julgador, expressando-se de modo incorreto, dissesse, naquele momento processual, estar comprovado o direito do autor e ele plenamente convencido da procedência da ação, ainda assim tal declaração ou seria inútil, por ser reversível (revogável) na sentença final; ou acabaria valendo como declaração definitiva.
Isto permite-nos uma conclusão interessante. Nem a assertiva de Buzaid identificando o ‘objeto do processo’ com o mérito da causa é correta, pois haveria tratamento da lide que não se identificaria com o julgamento de mérito; e nem o entendimento de Theodoro Jr., ao afirmar que ‘lide e mérito são sinônimos’ é verdadeiro. A lide pode ser tratada através de uma medida liminar, sem que o mérito seja sequer tocado; assim, como poderá sê-lo, por exemplo, nas ações de despejo e de esbulho possessório, objeto de provimento executório decorrentes do julgamento de mérito, ou julgamento da lide, conceitos estes, sim, como disse Liebman, sinônimos perfeitos. Mesmo não sendo, o provimento executório, um julgamento de mérito, ninguém lhe negaria a condição de ‘objeto do processo’.
Galeno Lacerda, assim como Ovídio Baptista, não comunga do entendimento de que lide e mérito seriam conceitos equivalentes.  Para o autor, mérito é um conceito que implica juízo de valor aplicado à conduta humana. Filosoficamente, é a propriedade do ato, em virtude do qual o sujeito ativo receberá uma recompensa ou sofrerá uma pena. Em síntese, diz Galeno, pode-se definir mérito como sendo a propriedade do pedido do demandante da ação processual conformar-se ou não com o direito e, via de consequência, ser acolhido ou rejeitado. Para ele, todo juízo de valor consistirá numa sentença de mérito.

Isto posto, quando usei a palavra lide, num processo administrativo, fi-lo sem querer maiores digressões, simplesmente como se estivesse usando a expressão “trabalho” “luta” “assunto” e nem estava pensando em contraditório.
Usei “lide” da mesma forma que a foi usado “cunhada” pelo ilustre revisor na sua crítica, a quem rendo homenagem pelo alto saber jurídico.
Mera questão de estilo.
Romeu Oliveira Gurgel